Maria Carmem

Cotidiano

Esta história está um pouco romanceada, mas aconteceu de fato.

Era mulher, negra e pobre.   Nasceu em 1918 e foi batizada como mais uma Maria: Maria do Carmo, mas ficou conhecida apenas por Carminha. Mal acabou o básico do ensino ofertado aos pobres, ainda uma menina, migrou de Minas Gerais para a cidade do Rio de Janeiro.

A Carminha tinha 1,63 m de altura e, embora pequena, carregava a força das Marias, o dom das negras e a marca das mulheres. Maria Carmem. Esse era o seu nome.

Maria amava cantar, contam, àqueles que a conheceram, que seus grandes olhos castanhos e amendoados se fechavam sempre que ela cantava Ataulfo Alves. Mas na pobreza é preciso ter gana sempre, cantar era só um sonho e a vida e a fome falavam mais alto.

Em 1939, aos vinte e um anos, Carminha já lavava roupas para fora e cozinhava em casas de famílias cariocas. Trabalhava no que fosse preciso, jamais teve medo do serviço. Um dia, ela conseguiu um trabalho de “carteira assinada“, foi parar na rua Conde de Bomfim, no bairro da Tijuca. Maria recebia o salário de 150 mil réis, era doméstica. Trabalhava numa pensão e a sua patroa se chamava Dona Augusta de Jesus Pitta.

Maria do Carmo (Carminha) – Década de 1930 – Data aproximada

No início de 1942, enquanto esperava o bonde na frente da pensão da Dona Augusta, Carminha conheceu um homem chamado João, ele era motorneiro, motorista do bonde da linha Tijuca. E uma paixão tomou conta dos dois.  Nascia ali o amor entre Carminha e João.

Os dois se encontravam todos os dias após o trabalho. E num dia desses, Carminha ficou grávida. João não queria casar. (Dizem que a essa altura o tal João já estava longe dali).

Grávida e mãe solteira – ela havia registrado o filho sem pai – Carminha seguiu trabalhando com a Dona Augusta. E numa tarde, enquanto trabalhava na pensão, as dores do parto foram crescendo, até que seu bebê chegou. Nasceu ali, em um quarto da casa de Dona Augusta. Era um menino e todos na pensão adoravam a criança. Mas num certo dia, Carminha e Dona Augusta se desentenderam e, coisas da vida, Carminha se demitiu do emprego.

Com a criança no colo, mudou-se para a favela Barreira do Vasco, que ficava na Baixada de São Cristóvão. Um dia, com saudades da criança, Dona Augusta resolveu ir visitar Carminha.

E chegando na maloca em que ela morava, em Barreira do Vasco, Augusta viu uma Carminha magra e uma criança igualmente mal nutrida. Dona Augusta pediu que Carminha voltasse com seu filho para pensão. Orgulhosa, ela não quis.  Carminha não vivia, apenas aguentava.

Aos vinte e cinco anos, Carminha contraiu tuberculose. Cada vez mais magra, começou a temer que seu pequeno filho também viesse a se contagiar. Então, abriu mão do filho e pediu para que o menino fosse levado de volta para a pensão.   Dona Augusta o levou e cuidaria dele até Carminha melhorar.

Carminha voltou para a casa da mãe, para se tratar em Minas.   E chegou muito mal, magra e doente, sangrando e com  alucinações. Maria do Carmo, que não conseguiu viver e amar como qualquer mulher do planeta, morreu aos 26 anos, em 1944. O filho ainda não tinha dois anos quando ela morreu. Dona Augusta acabou ficando com a criança na pensão e o pai nunca procurou o filho.

Um dia, a filha de Dona Augusta, Lília Silva Campos, estudante de piano (que havia estudado com Villa Lobos), e casada com Josino,  disse para toda a família que queria adotar o pequeno menino. Ela, que tinha apenas 22 anos, explicou que não podia ir embora e deixar aquela criança ali, sem uma mãe.  É que ela tinha se apaixonado, com a força do amor de uma mãe, pelo filho de Maria Carmem.   Pediu autorização para a avó, mãe de Carminha, que envolta em pobreza era incapaz de cuidar do menino.  Assim, Lília virou mãe.

A criança foi morar com Lília na cidade mineira de Três Pontas, onde ele foi criado e cuidado. Cresceu vendo a mãe adotiva tocar piano na sala de casa e tinha na alma a herança de Carminha, o seu canto, uma mania de ter fé na vida.

Ele tinha os olhos da mãe Maria. E das tantas maneiras que acontecem, foi nos olhos que a mãe ficou para sempre em seu filho. Um olhar tão lindo. O menino cresceu, tomou o gosto pela música e começou a cantar em bailes.

O filho da Maria, quem chamavam de Bituca e que passou a ser filho da Lília, com o tempo ficou bastante conhecido. Dizem que, ao entregar seu filho para Dona Augusta, Carminha apenas pediu para não mudarem seu sobrenome. Hoje ele é conhecido como Milton Nascimento.

E eu duvido que agora, depois dessa história, você ouça a canção “Maria, Maria” da mesma maneira.   E Maria não vive, apenas aguenta.

 

Texto de Renzo Grosso, adaptado de várias publicações.

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